Evidência de Aprendizagem

O texto abaixo foi escrito pela Profa. Dra. Maria Matuck Abranches para o Projeto Dicionário PDA ESPM, em 31-10-2016

Portfólio como evidência de aprendizagem

Segundo o Dicionário Aurélio, porta-fólio é uma “pasta de cartão usada para guardar papéis, desenhos, estampas etc.”. A simplicidade dessa definição não contempla por certo as múltiplas significações que o termo assumiu ao longo dos anos. Ao ampliarmos o entendimento do termo, mesmo que inicialmente, podemos definir portfólio como o conjunto dos trabalhos mais representativos realizados por um estudante ou um profissional de diversas áreas.

No universo das artes, por exemplo, o termo portfólio se refere ao conjunto de trabalhos de um desenhista, roteirista, fotógrafo, ator, modelo, etc. Já no universo da publicidade, o termo se refere ao conjunto de peças ou ações planejadas, criadas ou produzidas para determinado anunciante. Independentemente da área, o portfólio se presta a um mesmo fim: apresentar o profissional ao mercado, visando, dessa maneira, conseguir um trabalho, fixo ou freelance.

Atualmente, pode-se dizer que o conceito de portfólio extrapolou as funções a que nos referimos – hoje, o termo portfólio contempla não apenas o conjunto dos melhores trabalhos de estudantes ou profissionais, mas também a coleção de produtos e serviços de uma organização. Assim, na área comercial, a palavra portfólio é usada como sinônimo de coleção, cardápio ou menu de produtos. Um banco, por exemplo, pode divulgar seu portfólio de opções para investimentos; uma escola pode usar o termo para se referir a opções de cursos; um fabricante de produtos químicos pode usar o termo para se referir ao conjunto de seus produtos de limpeza.

Na área pedagógica, o conceito de portfólio vem ganhando espaço como expediente participante do processo de avaliação, para além dos métodos tradicionalmente utilizados, como provas e trabalhos. Na verdade, podemos dizer que o portfólio é um dos elementos de uma discussão maior, justamente a limitação representada pelos métodos avaliatórios convencionais: o que se pretende, quando se avalia o desempenho estudantil? O que mostram os métodos avaliatórios tradicionais? Há, no Brasil e no mundo, uma série de provas que visam a identificar fundamentalmente o nível de conhecimento obtido pelo aluno. Mas, em que medida uma prova de fato avalia? E, mais: o que ela avalia? O simples fato de essa discussão ser possível mostra que ela é necessária e reflete a mudança que atinge não apenas os processos de avaliação, mas o papel mesmo da educação e da escola que, enquanto instituição social, participa da sociedade de maneira determinada. Nesse sentido, cabe perguntar: se a escola apenas refletisse os valores sociais vigentes, que espaço haveria para que ela os refratasse? A refração desses valores pode ser encontrada no processo de elaboração do portfólio, daí sua importância como prática estruturadora de novas visadas pedagógicas.

Em seu penetrante estudo sobre o tema, Benigna Maria de Freitas Villas Boas aborda o tema do portfólio inserindo-o na questão maior da avaliação dentro do trabalho pedagógico. A autora lembra que a “avaliação existe para que se conheça o que o aluno já aprendeu e o que ele ainda não aprendeu, para que se providenciem os meios para que ele aprenda o necessário para a continuidade dos estudos” (VILLAS BOAS, 2004, p. 29). Tocando num ponto crucial para o tema, a auto-avaliação, a autora segue dizendo que “o envolvimento dos alunos no registro dos resultados lhes dá a oportunidade de acompanhar seu desempenho por meio da auto-avaliação contínua. Uma das maneiras de conseguir isso é a construção de portfólios que contenham evidências do seu progresso e reflexões sobre o andamento do trabalho” (VILLAS BOAS, 2004, p. 33).

Para Leonir Pessate Alves, o portfólio é um “facilitador da construção, reconstrução e reelaboração do processo de aprendizagem” (ANASTASIOU, ALVES, 2009, p. 115). Essa visão leva facilmente à constatação de que “o portfólio permite aos professores considerarem o trabalho de forma processual, superando a visão pontual das provas e testes, integrando-o no contexto do ensino como uma atividade complexa baseada em elementos de aprendizagem significativa e relacional.” (ANASTASIOU, ALVES, 2009, p. 115). Essa característica permite constatar que a construção do portfólio faz parte da construção do conhecimento, seja o do aluno, seja o conhecimento enquanto construto social, na medida em que essa construção se dá como resultado da contribuição das mais diversas vozes sociais. Se, durante muito tempo, essas vozes resumiam-se a umas poucas, as socialmente dominantes, o portfólio representa, em alguma medida, a possibilidade de que outras vozes possam contribuir para a referida construção do conhecimento – é o caso dos estudantes de comunicação social, como veremos mais adiante.

A presença do portfólio no processo de aprendizagem permite que especulemos sobre a construção mesma do conhecimento. Como se sabe, a racionalidade moderna, em seu processo constitutivo, caracterizou-se por estreitar (por assim dizer) as formas de conhecimento, que seria obtido a partir das disciplinas formais da lógica, da matemática e das ciências empíricas. Assim, o ato de conhecer ganhou contornos fundamentalmente quantitativos e, para tanto, foi necessário dividir e classificar o todo em partes isoladas, com as quais seria possível estabelecer relações de causa e efeito. Dessa forma, garantia-se que os fenômenos pudessem ser vistos como estáveis. Os inegáveis avanços nesse tipo de racionalidade não impediram que suas limitações aparecessem, a mais notável delas resultado de sua principal característica, a divisão. Para fazer frente a essa limitação, a pedagogia contemporânea tenta incorporar outra racionalidade, agora mais inclusiva, que leve em conta a integralidade do processo de aquisição do conhecimento, o que inclui a participação mais ativa daquele que antes era considerado apenas o “objeto” do aprendizado, o aluno. Abordagens, técnicas e procedimentos inclusivos, como as chamadas metodologias ativas, por assim dizer, se inserem nessa nova racionalidade participativa do aluno – o portfólio se abriga nessa racionalidade.

A eventual dificuldade da aceitação do portfólio como recurso avaliatório reside no fato de que há muitas gerações todos temos sido avaliados quase que exclusivamente baseados em provas e trabalhos – as provas, particularmente, são valorizadas como instrumento de avaliação. Segundo Leonir Pessate Alves, “a cultura da medida ainda é muito forte na academia.” (ANASTASIOU, ALVES, 2009, p. 119).

O portfólio, no sentido em que representa um instituto formacional ativo, participativo, que exige não apenas autoanálise, mas, que, ao fazê-lo, coloca em questão os méritos mesmos dos processos de avaliação convencionais, representa um desafio para o qual o sistema pedagógico e educacional como um todo não se preparou. Por suas características inerentes, o portfólio é um sistema tipo “work in progress”, constante – assim, ele não se presta aos formalismos típicos das avaliações convencionais, mas se insere, antes, no grupo de metodologias ativas, que consideram o aprendizado um processo, não como um resultado em si. Dito de outra maneira, a construção do portfólio se abriga perfeitamente bem no conceito maior das pedagogias ativas, pelos quais se busca conferir maior protagonismo ao aluno em seu processo mesmo de desenvolvimento intelectual.

Falando especificamente da atividade publicitária, o portfólio tem uma importância fundamental não apenas para os profissionais já inseridos no mercado de trabalho, mas representa para os estudantes a oportunidade de se inserir nesse mercado. Registre-se que cotidianamente, no ambiente da publicidade, o termo portfólio também é conhecido simplesmente como “pasta”. Podemos dizer que o portfólio do estudante é a maneira através da qual ele irá se apresentar ao mercado do qual quer fazer parte, e o sucesso (ou não) dessa apresentação repercute no desenvolvimento de sua carreira. Desse ponto de vista, o portfólio do estudante reveste-se de uma importância única e deve merecer da parte dos professores a mais dedicada atenção. Oportfólio desempenha um papel específico que é há muito conhecido de todos os agentes do campo. No caso que nos interessa destacar, o portfólio que o aluno vai construindo ao longo do curso de comunicação social será apresentado ao mercado com o objetivo de conseguir uma colocação profissional. Entre os diversos méritos existentes no processo de construção conjunta aluno-professor, no caso do portfólio, está o aprimoramento, por parte do aluno, da noção dos critérios que distinguem um bom portfólio de um portfólio que não cumpre essa função. Lembrando que a avaliação do portfólio se dá sempre em duas chaves, uma que demonstra que houve o aprendizado em determinada matéria e a outra que houve sucesso na apresentação do portfólio para se conquistar um lugar no mercado. Embora ambas as chaves se inter-relacionem, podemos dizer especificamente que no que diz respeito ao sucesso do portfólio na conquista de uma vaga no mercado, a questão do aprimoramento dos critérios é ainda mais fundamental: segundo a sociologia bourdiana, por exemplo, tratar-se-ia de fato de um processo de incorporação das disposições que o campo exige de todo entrante (e de todos os agentes). Em outros termos, o portfólio do estudante será considerado bom se os trabalhos nele inseridos responderem da melhor maneira possível aos critérios que o campo legitima como bons – e essa incorporação tem, primeiro na sala de aula e, depois, no processo da construção mesma do portfólio, dois momentos privilegiados. Nesse processo de construção e incorporação de critérios, o aluno terá de lidar com questões como qualidade, bom gosto, eficiência (resposta ao briefing), tendências criativas, demandas de mercado – questões que farão parte do seu dia a dia como profissional já inserido no mercado. Desse ponto de vista, a aquisição dos critérios vigentes no campo não é apenas um processo, mas é, em si mesmo, um critério, sujeito à dinâmica de forças do campo publicitário na qual a luta pelas posições dominantes é, entre outras coisas, a luta pela imposição dos critérios de avaliação.

A participação do orientador na construção do portfólio exige uma postura que poderemos sem receio qualificar de ética. A dedicação do aluno na construção do próprio portfólio gera nele uma expectativa que o faz ficar particularmente sensível à crítica. Se essa sensibilidade será desconsiderada (para dizermos eufemisticamente) na crueza da realidade de mercado, no caso de uma avaliação negativa, o mesmo não pode acontecer no ambiente acadêmico, formacional por excelência. Do professor-orientador, portanto, exige-se uma posição de acolhimento, que respeite os limites do aluno e a evolução que ele já experimentou em seu desenvolvimento.

A questão dos critérios é central em um trabalho de elaboração conjunta do portfólio. Nessa elaboração, não é razoável pensar que haja isonomia nas posições do aluno e do professor-orientador, o que sobressalta mais uma vez a necessidade de que o orientador adote uma posição “técnica” e ao mesmo tempo uma posição de acolhimento, como mencionado.

O desenvolvimento dos critérios que serão aplicados à avaliação do portfólio é tão importante que, segundo Benigna Maria de Freitas Villas Boas (VILLAS BOAS, 2004, p. 62), estes (os critérios) fazem parte de um “processo desenvolvido ao longo do ano”. No caso do portfólio construído com o aluno de comunicação social, podemos dizer sem receio de erro que esse processo leva anos, e, por óbvio, se estenderá por sua vida profissional.

A construção do portfólio do estudante de comunicação social deve ser vista também como um importante instrumento pedagógico, na medida em que contribui para que haja uma bem-vinda horizontalidade, que representa uma espécie de contraponto à tradicional verticalidade centralizada e centralizadora típica da docência universitária. Em seu livro, a autora faz um relato detalhado das dificuldades da inserção do portfólio como instrumento de avaliação nas universidades e nas escolas. O mérito do trabalho de Villas Boas está no fato de que ele traz uma valiosa contribuição bibliográfica para uma área de estudo reconhecidamente exígua de trabalhos.

Devemos observar, contudo, que se a autoavaliação que caracteriza o portfólio é um processo a ser conquistado, seja no ensino médio, seja no universitário, no caso do curso de comunicação social o portfólio não representa propriamente uma tensão, porque é um procedimento já legitimado pelo campo.

Achamos oportuno registrar que o portfólio tem sido utilizado como dinâmica mesmo em situações nas quais ele não seria esperado – referimo-nos, por exemplo, ao uso do portfólio como procedimento de acompanhamento da evolução da criança no caso da pré-escola.

O portfólio levanta uma questão pedagógica importante: ainda é possível pensar e praticar uma relação educacional top-down, de cima para baixo, sem contar com a participação ativa do educando? De que pedagogia se pode falar, a partir da inclusão da experiência do portfólio como expediente fundamental no processo de desenvolvimento do estudante? Claro que, no caso das faculdades de comunicação social, o portfólio tem uma conotação particular, na medida em que ele já se inseriu como prática, o que não significa dizer que ele seja usado pelas faculdades de comunicação de maneira estruturada, como acontece na Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM.

No caso do estudante de comunicação social, a construção de critérios não se dá apenas através das aulas teóricas. Mais do que isso, hoje o aluno tem na internet uma fonte de consulta de grande riqueza, o que faz com que a construção do portfólio seja uma atividade mais enriquecedora, na medida em que o aluno traz referências que podem não ter sido contempladas pelo professor, fazendo com que ambos, aluno e professor, abordem a questão da adoção de determinado critério para a análise de certo trabalho presente no portfólio de maneira mais inclusiva.

Deve ser registrado ainda que durante muito tempo o portfólio foi entendido como uma pasta física na qual os trabalhos impressos eram colocados. A partir dos anos 2000, contudo, plataformas online como Behance, Carbonmade, Tumblr, Deviantart passaram a permitir a publicação de portfólios digitais, às quais se seguiram outras, como Cargocollective e Readymag, por exemplo. Todas essa plataformas de publicação de portfólios e trabalhos online permitem que cada estudante tenha um endereço único que geralmente é seguido do nome da plataforma, exemplo: cargocollective.com/nomedousuario e oferecem versões gratuitas aos estudantes. No momento mesmo da redação deste texto uma das plataformas que mais faz sucesso na área publicitária é a Squarespace que só permite a publicação de trabalhos através de conta paga, tanto para profissionais quanto para estudantes.

A propagação dos portfólios onlines – ou webfólios, como são chamados por alguns – praticamente eliminou do mercado as pastas físicas com trabalhos impressos. Assim é muito comum um estudante ter seu portfólio avaliado por um profissional do mercado sem que ele (o autor) esteja presente. O profissional que está oferecendo a vaga costuma avaliar pastas online e solicitar a entrevista apenas com os previamente selecionados. Isso acentua o caráter autônomo do portfólio, já que sem a presença do autor para apresentá-lo, a pasta terá que se auto defender. Esse é um ponto de atenção importante na construção do portfólio para publicidade: ao mesmo tempo que deve ser visto como uma evidência de aprendizagem ele deve prescindir de explicações e defesas, uma vez que o receptor será soberano para avalia-lo. Em outras palavras, vale para o portfólio o que vale para a comunicação em geral: importa mais o que o receptor entendeu da mensagem do que o que o emissor tentou dizer.

Referências

ANASTASIOU, L. das G. C.; ALVES, L. P. (orgs) (2009). Processos de Ensinagem na Universidade: pressupostos para as estratégias de trabalho em aula. 8. ed. Santa Catarina: UNIVILLE.

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HERNÁNDEZ, F. (2000). Cultura Visual, Mudança Educativa e Projeto de Trabalho. Porto Alegre: Artmed.

SÁ-CHAVES, I. da S.C. (2004). Discutindo sobre portfólios nos processos de formação. Entrevista com Idália Sá-Chaves. Olhar de professor, Ponta Grossa, 7(2): 09-17.

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VILLAS BOAS, B. M. de F. (2004). Portfólio, Avaliação e Trabalho Pedagógico. Campinas: Papirus.

ZANELLATO, J.R. (2008). Portfólio como Instrumento de avaliação no ensino de graduação em artes visuais. Dissertação de Mestrado em Educação – Programa de Pós-graduação em Educação do Centro de Ciências Sociais Aplicadas Pontifícia Universidade Católica de Campinas, São Paulo, Brasil.